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POR UM FIO

 

    A figura presa por um fio vista ao entrar na sala de exposições causa inquietações. A tênue linha que segura o corpo suspenso no ar é o limite entre dois mundos: vida e morte. A situação delicada da figura feminina estendida na horizontalidade mostra fragilidade, efemeridade, e isso não gera estranhamento, pois a mulher se depara com uma condição familiar, ou seja, as situações extremas que as tornam vítimas de estupros e feminicídios. Além disso, para completar o cenário, o rosto dela está coberto, indicando que pode ser qualquer uma, ou uma de nós.

    A exposição Por um Fio é um espaço de confluência de diferentes formas de experiência. Alguns trabalhos mostram por meio de pinturas e objetos a cena metafórica de se estar por um fio, em que a vulnerabilidade toca profundamente. A obra acontece sempre a partir do corpo feminino que retrata um corpo fora dos padrões estéticos estabelecidos, contudo, na poética de Susan Mendes, ele é perfeito com suas imperfeições.

    Outras séries, como Mulheres Confinadas, realizadas durante a pandemia da COVID-19, em 2020/2021, trazem o peso da solidão. As costuras e os rasgos na superfície dos trabalhos causam inquietude e aflição diante desses cortes e desse corpo tocado com agressividade ou perversidade. As mulheres retratadas são anônimas, sem rostos, passivas diante de sua própria sorte, atravessadas por costuras que perpassam corpo e alma.

    As duas séries de trabalhos Por um Fio e Mulheres em Confinamento flutuam entre as diversas propostas artísticas da exposição. Além delas, outras séries estão dialogando entre si neste espaço, criando percepções múltiplas e instigando o campo dos sentidos, como ver, tocar, sentir.

    Os livros da artista construídos sobre o corpo feminino e a inserção da mulher em novos paradigmas também fazem parte da exposição. As páginas foram tecidas a partir de um embate entre materiais, conceitos e manipulações artísticas, em que mulheres imperfeitas, sensíveis e fortes buscam seu lugar no mundo para que possam se ajustar, se encontrar e “se caber” – como diz Susan em situações delicadas e hostis. 

    As obras têm como suporte o papelão corrugado descartado, usado em embalagens de eletrodomésticos e outros. Esse material agrega dois aspectos importantes na produção de Susan Mendes: o primeiro, diz respeito às suas texturas que oferecem originalidade às obras; o segundo, é o valor conceitual relacionado com o feminino, já que é frágil e delicado por fora, mas se mostra forte e resistente por dentro. Sobre o papelão, as tintas, o carvão, as colagens e as costuras contribuem com o processo de construção que é lento. A passagem do tempo aparece no desgaste desse material que está intrinsecamente ligado ao descarte da mulher quando não corresponde mais aos padrões exigidos por uma sociedade de consumo em que os apelos de juventude e beleza são mais do que necessários.

    A poética instaurada nos trabalhos dessas séries aconteceu a partir de figuras femininas não tão perfeitas em suas constituições físicas. Os materiais utilizados sempre são o ponto de união entre quase todas as obras e foram sendo agrupados a outros a partir de relações simbólicas. A diversidade de práticas e ações artísticas tornaram o processo criativo cada vez mais instigante.

    Por um Fio traz uma experiência sensorial e emociona pela potência das obras. O observador, ao andar pela sala, sente-se diante de um enigma: a efemeridade da vida em contraponto à força da mulher. O tempo de cada experiência cabe em um único espaço e quem ali entrar certamente não sairá mais o mesmo.

    As mulheres sempre sofreram preconceitos machistas de uma sociedade patriarcal – herança da burguesia – fundamentada na família que impôs a elas o papel reprodutivo, privando-as do poder e da voz. No campo artístico, tiveram a mesma problemática, visto que seu apagamento na História da Arte foi constante. Infelizmente, as páginas arrancadas da história não podem mais ser reescritas, entretanto, aos poucos, abrem-se frestas nesta árida paisagem para romper com a cegueira em relação à obra de artistas mulheres que perdura por séculos.

    Susan Mendes vence barreiras em todos os sentidos, pois busca sua legitimação a partir de um trabalho em que a figura feminina é o centro de sua poética, em que procura desconstruir os conceitos enraizados sobre a mulher na arte e na vida.

Ana Zavadil

curadora

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